Na
multidão de um homem só, fazia frio o ano todo. Sua alma vazia tinha
esquecido que ainda cabiam poemas ou que as palavras circulavam por
todas as veias até a aorta. Suas pernas cumpriam o percusso de todos os
dias, não tinha tempo para pegar um caminho novo, preferia fotografar os
carros. Quem se importa mesmo com as nuvens? Suas retinas fixavam a cor
dos semáforos:pare, olhe, siga. Todos lhe davam ordens, até os objetos
inanimados. Os anúncios, todos muito coloridos sugavam qualquer néctar
de vida e transformava até os amores em algo fútil, demodê ou
descartável. Era só mais um atrevessando a avenida e o importante era não olhar pra trás, muito menos pra dentro de si.
"Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, pergunrando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar."